Tu não sabes, mas faço diariamente a viagem. Entro em fila, por entre os moribundos corpos que se arrastam lentamente como se a morte os esperasse. É senso comum, ninguém teme o atraso quando o visado é a própria morte. E é desta forma que todos embarcamos, entreolhamo-nos e baixamos a cabeça. Muitos desejam que a viagem seja rápida, outros que seja eterna, mas a grande maioria deseja que hoje o destino seja diferente de o de ontem, desejam que alguém os leve para outro lugar e que percam qualquer sentido de orientação para que nunca mais consigam voltar. São estes os mais pálidos, têm o olhar vazio e um ar de desespero evidente na expressão facial. Consigo ouvir os seus suspiros contidos e as suas rezas sussuradas. Está frio e já anoiteceu. Sinto um gélido conjunto de olhares que se fixa em mim e me faz sentir excluído deste grupo de múmias que há muito entregaram as suas rédeas e deixaram de seguir o seu próprio percurso. Olho de soslaio para todos eles rapidamente pois receio o contágio da sua enfermidade e sorrio discretamente. Saio da embarcação podre e cinzenta e começo finalmente a segunda parte do meu dia.